sábado, 3 de maio de 2008

[Crônica] A vida de Valdemar entre dois pontos

Ele se chama Valdemar e é mais conhecido como "Foguinho" ou "Negão". Todos os dias, ainda quando o sol está surgindo, pega o ônibus para a faculdade. Ele praticamente tem o seu lugar marcado, um banco que acha confortável, mas que cansa ao longo dos tempos. Aliás, ele cansa de ir todos os dias para o campus universitário e ter que voltar, sempre. Mas ele reclama da boca para fora, pois lutou muito para conseguir uma vaga e não quer passar por todo o sufoco de bancos e filas de espera de novo.

Valdemar vive com os pais desempregados e mais dois irmãos, Érica, de 14 anos, e José - mais conhecido como Pepe - de 10. Vivem de biscate. A mãe cuida de senhores de idade que a família, por algum motivo, não pôde/quis cuidar. Já o pai trabalha como segurança de uma danceteria noturna. Tudo informal, sem carteira.

Por isso, Foguinho não reclama de ir todos os dias para a universidade de ônibus, enfim, além da oportunidade, são tantas as moças e beldades de vários lugares da região que ele fica olhando admirado. Ele é simpático com todas, ajuda com as malas, sempre com um sorriso no rosto. Se apaixona e se desapaixona diariamente no ônibus. Aliás, ele adora passar o tempo no ônibus conversando com as pessoas. Já ouviu de tudo: briga com o namorado, discussões sobre o aperto no ônibus ou sobre algum jovem que se fez de desentendido e não cedeu lugar ao senhor de idade nos bancos da frente.

Foguinho chega ao final da linha Centro-Universidade, pega seu material e faz o balanço da viagem. Sua função básica é se certificar de que todos os passageiros entregam a ele a fichinha marrom ou azul, verificar se as grávidas pagaram a passagem ao motorista e que ninguém vai sair pela porta de trás do veículo sem passar por sua roleta.

Ele fez mais viagens à universidade que muitos acadêmicos que lá estudavam, além de passar todos os dias pela biblioteca e se enxergar lá dentro, entulhado em livros de cálculo financeiro e traças. Ele prestou alguns concursos para entrar na universidade - digamos que, não somente entrar, mas, sim estudar lá -, mas nunca foi aprovado.

Um dia, ele chegou em casa, com a bunda amortecida pelo dia sentado, e ligou a televisão. Viu no jornal noturno que o presidente falava algo sobre cotas raciais para o ingresso universitário. Ele não estava entendendo aqueles conceitos, afinal o que raça tinha a ver com oportunidade no ingresso? Então, ele viu alguém como ele, quer dizer, da mesma cor que ele. Um pouco mais claro, mas com seus traços. Esse alguém não vestia a roupa de alguma empresa de serviços terceirizados, nem era algum cantor popular, era o Alfredo, negro, 21 anos, acadêmico de uma universidade do nordeste.

O que separava os dois? Alfredo prestou vestibular para uma instituição que tinha acatado a discussão federal e implantado as cotas raciais, tornando Alfredo um feliz acadêmico. Talvez Valdemar tenha mudado naquele dia. Talvez Valdemar tenha pensado por que ele também não tinha essa oportunidade.

Naquela noite, sonhou que entrava no ônibus, sentava-se, passava pela roleta entregando sua passagem com desconto, e sorria.
Não somente para as beldades do ônibus, sorria ao ver o arco da universidade pública, não de lado, mas de frente.

Júlia Schnorr, participante do Práxis
Março 2007

Um comentário:

Anônimo disse...

Oi Júlia!

Você conseguiu captar a subjetividade humana por trás do debate acadêmico, jurídico, político do debate da democratização do acesso ao ensino superior. Parabéns!

Igor Corrêa Pereira
Equipe Geografia do Práxis