terça-feira, 22 de julho de 2008

Práxis: voluntariado e/ou militância política? Isto, aquilo, a mesma coisa ou coisíssima nenhuma?

A idéia de que não existe coisa alguma de social na educação; de que, como a arte, ela é pura e não deve ser corrompida por interesses e controles sociais, pode ocultar o interesse político de usar a educação como uma arma de controle, e dizer que ela não tem nada a ver com isso.

C.R BRANDÃO. O que é Educação?

Nos últimos anos, principalmente a partir de meados da década de 1980, terminologias como PRÉ- VESTIBULAR GRATUÍTO ou PRÉ- VESTIBULAR POPULAR vem sendo utilizadas para designar diversos projetos educacionais criados pelo país pelas mais diversas frações da sociedade (como empresários, entidades religiosas, movimentos sociais etc.) que se propõe a discutir e a realizar ações ligadas ao Campo Educacional como um todo e, de forma especial, a temas vinculados ao acesso ao Ensino Superior. Embora estas ações, apenas aparentemente, tenham os mesmo objetivos (prover as camadas “marginalizadas” da população – que no caso da quase-democracia brasileira, composta majoritariamente por negros/as, mulheres, índios/as, trabalhadores diretos, enfim, pobres quase- cidadãos – de condições de acesso às universidades), a constante ligação entre seus projetos e noções como “Voluntariado”, “Cidadania”, “Responsabilidade Social”, “Militância Política”, “Democratização” ou “Desenvolvimento Econômico e Social” revelam não apenas diferenças entre estes vários projetos, como também mostra que eles trazem consigo propostas vinculadas não só a educação, mas a sociedade como um todo.

Assim, integrar/pensar/construir o projeto Práxis – Coletivo de Educação Popular envolve debater estas diversas ações, identificando de que forma elas concebem a educação e as relações que ela estabelece com o restante da sociedade. Evidentemente, esta discussão exige a reflexão a respeito do sentido da profissão de educar, e entre nós, acadêmicos/as e/ou professores/as, levanta algumas perguntas importantes: Por que eu quero ser um educador? O quê, para quem e de que forma eu pretendo ensinar? Eu tenho, realmente, algo a ensinar?

Nos cartazes de divulgação do Práxis em 2005, literalmente desafiamos a comunidade acadêmica à conhecer o projeto. Este material, que tem como público alvo todos aqueles que, ao aceitarem o desafio, também se desafiaram a integrar algum dos nossos Grupos de Trabalho, é uma PROVOCAÇÃO. Provocação porque pretende introduzir entre nós discussões ignoradas/negadas ou, vistas quase que como posições heréticas pela maioria dos acadêmicos/as e professores/as. Portanto, sinta-se provocado/a!

Delírio ou cinismo: neoliberalismo, voluntariado, educação e a apologia aos self made men.

A mais forte manifestação da “vocação” filantrópica, escravocrata e moralizante das elites empresariais, políticas, eclesiásticas e mesmo da “intelectualidade”, no Brasil, dá-se mediante a visão de que a escola é o “locus” por excelência destinado a solucionar o problema da violência, dos meninos e jovens infratores, da pobreza, do subemprego, do mercado informal, desemprego e, hoje, especialmente, dos desenraizados meninos e meninas de rua”.

G.FRIGOTTO. Educação e Formação Humana: ajuste neconservador e alternativa democrática.

A partir de meados da Segunda metade do século XX, fatores internacionais de diversas ordens vêm impondo aos homens de negócios a necessidade de aumento de suas condições de ampliação das taxas de lucro. Embora não tenhamos espaço, aqui, para aprofundar este debate, é necessário dizer, para o desenvolvimento dos pontos que pretendemos discutir que, a grosso modo, a saída encontrada pelos empresários nacionais e estrangeiros tem pautado-se na defesa da não intervenção do Estado na economia, de forma a garantir-lhes maior liberdade de ação nas mais diversas partes do globo.

Parte desta estratégia, convencionalmente chamada de neoliberalismo, fundamenta-se ainda no ataque a diversos direitos constitucionais conquistados pelos trabalhadores, como o acesso a serviços públicos como educação, saúde ou previdência social, acusados pelos homens de negócios de onerarem demasiadamente o Estado e impedirem o desenvolvimento econômico. No Brasil, onde a precariedade dos serviços públicos contrasta-se com o elevado número de impostos, fazendo com que grande parte das classes médias identifiquem-se com o discurso empresarial, a adoção destas estratégias têm resultado no aumento do histórico abismo social que separa ricos e pobres em verdadeiros guetos, sujeitando parcelas enormes da população ao subemprego, desemprego ou a mendicância, fazendo com que se ampliem os números de crianças expostas à prostituição e os índices de violência urbana e rural.

Para parte dos estrategistas dos homens de negócios, o Estado não deve interferir nestas problemáticas através de ações de assistência social, sob pena de incharem a máquina pública e colocarem em risco os interesses de ampliação das taxas de lucro dos grandes empresários, cabendo esta tarefa a própria sociedade civil. Sob este ponto de vista, diversas entidades empresariais, como FIESP (Federação das Industrias do Estado de São Paulo) e FIERGS (Federação das Industrias do Estado do Rio Grande do Sul) têm incentivado programas socais voltados às camadas submetidas à condições de vulnerabilidade social,2 o que vem sendo chamado de ações de Responsabilidade Social, ações Voluntárias ou ações Cidadãs.3

Ora, para que os diversos grupos empresariais possam ampliar suas possibilidades de obtenção de lucro financeiro, torna-se necessário que algumas condições sejam criadas: em primeiro lugar, é fundamenta para estes homens de negócios que a sociedade como um todo tome seus projetos econômico e social como justos e legítimos; da mesma forma, necessitam de trabalhadores formados para não questionar suas estratégias, de maneira que as reformas impostas sejam aceitas na maior passividade social possível.

Neste processo, a construção de propostas educacionais capazes de satisfazer seus interesses coloca-se como uma peça –chave, e vem apresentando –se na maior parte das chamadas ações de Responsabilidade Social ou Voluntárias. Estas ações, amplamente divulgadas na mídia como um compromisso cidadão, das quais os projetos Amigo da Escola, ligado a Rede Globo de TV e Cidadão Legal, à TV Bandeirantes, são apenas duas grandes expressões, tem mobilizado dezenas de milhares de pessoas em todo o país em torno de iniciativas que propõe Pré- Vestibulares Gratuitos e cursos para comunidades de favelas que vão desde o ensino do violino, balé, futebol, e até mesmo, da ginástica olímpica.

Uma breve análise atenta das propagandas de divulgação de tais programas nos permitem esboçar a compreensão destes estrategistas a respeito do papel da educação na sociedade: invariavelmente, elas vinculam a educação à formação de mão – de- obra qualificada bem como uma solução para inúmeras problemáticas sociais, como a violência, o uso de drogas, a prostituição, a mendicância etc. Na tarefa de convencimento da opinião pública acerca da legitimidade desta concepção da função social da educação, a apologia a alguns dos chamados self made men que, através do próprio esforço teriam vencido o racismo, o machismo e a pobreza extrema tornou-se quase que um fetiche: freqüentemente personalidades como os jogadores de futebol Pelé e Ronaldinho, o presidente Lula ou a ginásta Daiane dos Santos são citados como exemplos a serem seguidos pelos demais pobres do país.

Com o exposto até aqui, fica difícil ignorar que as chamadas ações voluntárias ou de Responsabilidade Social representam atividades essencialmente políticas, uma vez que as suas compressões e práticas educacionais revelam um apoio explicito aos interesses de ampliação das taxas de lucros dos grupos empresariais, justificando o ataque que vem sendo feito aos direitos dos trabalhadores. Da mesma forma, fica difícil de ignorar que o abismo social que separa ricos e pobres no país, e que nos últimos anos vem sendo ampliado em função da adoção das estratégias propostas pelos homens de negócios, possa ser superado por estas ações educacionais: 60% da população esta sujeita ao mercado de trabalho informal(!); existem mais de 40 mil indivíduos submetidos ao trabalho escravo (!) e há mais de 32 milhões de indigentes(!). Soa um tanto quanto ilusório, ou cínico, sugerir que toda esta população dedique-se ao balé, ao futebol ou a ginástica olímpica, de forma a constituírem um imenso grupo de Pelés, Ronaldinhos e Daianes.

A produção científica e a atividade profissional como uma ação política: horizontes e desafios do Práxis Coletivo de Educação Popular.

Política e ideologicamente (...) o neliberalismo alcançou êxito num grau com o qual seus fundadores jamais sonharam, disseminando a simples idéia de que não há alternativas para seus princípios, que todos (...) têm de adaptar-se a seus princípios e as suas normas (...) A tarefa de seus opositores é a de oferecer outras receitas e preparar outros regimes.

Perry Anderson- Balanço do Neoliberalismo.

Mas todo este prefácio, com todo o disparate das terias que contém, não vale coisíssima nenhuma (...) Garanto porém que chorei, que cantei, que ri, que berrei...Eu vivo!

(...)

Poderia ter citado Gorch Fock. Evitava o Prefacio Interessantíssimo. “Toda canção de liberdade vem do cárcere”.

Mário de Andrade – Paulicéia Desvairada.

Um caminho possível para análise, compreensão e identificação das especificidade do projeto Práxis Coletivo de Educação Popular no contexto das diversas ações da sociedade civil hoje é, sem dúvida alguma, resgatar sua história, apontado as ações que desenvolve e que pretende desenvolver. Este resgate, mesmo que tímido, contribui não apenas para esclarecimentos acerca da natureza do trabalho, com também representa uma forma de incentivar a socialização do debate em torno da sua gestão atual.

O ínicio das discussões para construção do projeto data do ano de 1999. Naquele período, os resultados de quase uma década de avanços de políticas derivadas de compreenções neoliberais para educação implementadas pelo governo Fernando Henrique Cardoso colocavam uma série de desafios para as universidades brasileiras, principalmente em função da desvalorização do trabalho dos docentes e dos técnicos administrativos, da redução dos fundos para pesquisa e da assistência aos estudantes. Naquele momento, o engessamento do movimento estudantil, fechado em suas disputas internas, impediu um dialogo com outros setores da sociedade e a articulação de forças que impedissem o avanço do processo de sucateamento das universidades que hoje presenciamos.

Foi neste contexto, que um grupo de acadêmicos da UFSM e da UNIFRA iniciaram as discussões em torno da necessidade de construção de um espaço de dialogo aberto com as mais diversas frações da sociedade civil, de forma a potencializar a avaliação critica e a construção de alternativas a crise que se apresentava. Colocava-se em questão as condições de acesso e permanência na universidade (afinal, o concurso vestibular e o PEIES representam, ou não, um meio democrático de acesso?); a produção científica e tecnológica (historicamente as universidades brasileiras tem formado mão- de- obra e produzido ciência e tecnologia para empresas privadas. Existe, mesmo, democratização do conhecimento?); a hierarquia universitária (a estrutura de gestão da universidade garante uma gestão democrática? O privilégio estrutural de alguns centros e o sucateamento de outros propícia a livre produção cientifica?) etc.

Em torno destas questões, a gestão de um projeto voltado a educação popular, pelas próprias bases metodológicas em que se sustenta esta perspectiva educacional (a construção de um processo educacional anti- autoritário, pautado no dialogo, troca de expeirência e pesquisa interdisciplinar como forma de apreensão e transformação critica da sociedade e da cultura), mostrou-se como uma ação estratégica. Através dele, esperava-se a construção de um espaço potencializador de uma redefinição crítica da formação acadêmica e da produção científica, de forma a apresentar alternativas possíveis a universidade e as diversas necessidades da sociedade.

Esta ação começou a tornar-se palpável no ano de 2000, com a criação do Práxis Pré- vestibular Popular. Institucionalizado como um projeto de ensino, pesquisa e extensão da UFSM, o trabalho vem procurando pesquisar/criar/praticar/divulgar alternativas educacionais ao modelo tradicional. Nos últimos cinco anos, diversas experiências vivências pelo grupo, que hoje constitui o maior projeto de ensino, pesquisa e extensão dos cursos de licenciatura da UFSM, encaminharam a ampliação das pesquisas e atividades propostas, como a participação na construção na construção e gestão de um galpão de reciclagem de lixo na vila caturrita (santa Maria, RS); a construção do Pré- e do Pró-Fórum Social Mundial Regional (Santa Maria, RS) e de diversas outras atividades ligadas a área da Saúde e da Economia Popular Solidária.

Com efeito, o projeto Práxis coletivo de Educação Popular caracteriza-se como uma ação política de uma parte do movimento estudantil insatisfeita com os limites impostos pelos meios tradicionais de intervenção social; pela pesquisa crítica e a construção de alternativas ao projeto educacional neoliberal; pela busca de uma redefinição da formação profissional e da produção científica articulando-se com as demandas dos mais diversos setores da sociedade. Desta forma, buscamos uma compreensão crítica da função social das escolas e da educação, que representem subsídios para um processo educativo e de produção de conhecimento capazes de apresentar alternativas possíveis aos problemas contemporâneos e incentivar a luta pela construção de uma cidadania emancipatória.

Denovo: isto ou aquilo?

O exposto até aqui já nos permite levantar alguns pontos que caracterizam as especificidades do Práxis no contexto das ações desenvolvidas por diversos grupos da sociedade civil atualmente. Em primeiro lugar, é necessário especificar que as diversas intervenções chamadas de Responsabilidade Social ou Voluntárias, muitas delas atuando hoje na forma de cursos pré- vestibulares gratuitos, questionam o acesso, mas não avançam em termos referentes a metodologia do ensino e de gestão do ensino tradicional.

Da mesma forma, é preciso que fique claro o caráter político de ambas as modalidades de intervenção: uma, como reprodutora e justificadora do discurso empresarial hegemônico; a outra, como questionadora e propositora de alternativas de viés democrático e participativo ao atual ataque aos direitos da classe trabalhadora.

Neste sentido, o Práxis busca a contrução de um tipo especifico de ação educacional que tenha como horizonte a democratização radical das esferas deliberativas das escolas e do Estado como um todo. Para isso, toma como base metodológica a resignificação da formação acadêmica, buscando a formação de educadores populares; e a democratização dos espaços públicos em que atua.



1 Cícero Santiago de Oliveira é professor Licenciado em História pela UFSM. Educador e membro da Coordenação Práxis Coletivo de Educação Popular.

2 Nos últimos anos estas ações também vem sendo desenvolvidos por empresas privadas com o intuito de abrandarem a ação dos movimentos sindicais, ou mesmo substituí-los por ações cooordenadas pelos empresários e não pelos próprios trabalhadores.

3 Este tipo de ação também tem hegemonizado as intervenções do movimento estudantil, principalmente através das atividades de “Trote Solidário” ou ‘Trote cidadão”, que incutem nos estudantes, já em sua entrada na universidade, a idéia de que ações de questionamento crítico do espaço educacional e da sociedade são desnecessárias.

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