sexta-feira, 1 de maio de 2009

De um bar

Eu sentia, travado na minha garganta, um ímpeto quase que incontrolável de dizer a ela que naquele dia, como em tantos outros, estava a perambular pelas ruas e a desviar das cadeiras entre as mesas dos bares deslumbrantemente fêmea, com seus pêlos e sua pele tornando lindos aqueles panos coloridos que ela adornava, e não o contrário – cada peça, estava claro, colocada estrategicamente sob sua pele negra, em um trabalho minucioso, que só uma fêmea que pretende despertar desejos sabe manipular. Mas não dizia.

Preciso lhe dizer, ando querendo desesperadamente aquela morena, comentei com uma amiga em comum, nós dois já altos, em um encontro casual em uma mesa de bar. Ah! Ela é minha amiga, mas vou lhe dizer, é tão complicada... Me disse um milhão de bobagens, fazendo de conta que tinha algum tipo de pudor, mas estava claro, não tinha. Estava louca para dizer, que não só de afetações com papais e mamães vivem as existências que sentam-se nas filas dos consultórios dos psicanalistas do mundo, elas se agradam também das perversidades humanas em outros formatos.

Que crueldade, pensei comigo mesmo. Seria mais uma destas histórias proto-freudianas e chulamente óbvias da moça com algum desvio paterno que precisava da figura de um machão para invadir-lhe a vida toda, saborear seu cotidiano, adorá-lo nas novidades, até concentrar-se em seus defeitos, até o tomá-lo como um completo imbecil e procurar outros cotidianos, novas civilizações?

Pensei, seria mais um destes seres a afetar logo a mim, mais uma vez? Logo a mim, que desde a infância, talvez também por desvios chulamente proto-freudianos, havia imaginado que o amor seria algo que como algum tipo de amizade muito da honesta, cheia de admiração, de companheirismo, temperada com uma boa de uma dose de tesão e passionalidade? Estaria eu, novamente, diante destas criaturas insatisfeitas com seus cotidianos, com suas vidas, dispostas a fazer uma pequena revolução pessoal, que se constituía basicamente em explorar outros horizontes que não eram senão outra coisa que o cotidiano de outras pessoas, que aparentemente, teriam a capacidade de lhe salvar da mesmice de cada dia e lhe oferecer novas aventuras, satisfações nesta vida maluca e que a gente tenta fazer com que não seja uma vida de merda? Todas estas coisas que surgem como um vulcão de originalidade e que, diante da incapacidade da re-invenção do cotidiano, em pouco tempo se tornariam novamente mesmices insuportáveis, cheias de objetos e objetivos insuportáveis, conversas insuportáveis, companhias insuportáveis e lugares insuportáveis ...

Ela ficava sentada em minha frente e eram necessárias descrições ao extravasamos nossos desejos, por vezes permeados pela civilidade que os bares de lugares machistas exigiam de mulheres que tinham um proprietário e por vezes descarados em olhares que se encontravam, dançavam, codinomes por demais carinhosos e recheados de desejos, e mãos e pernas que queriam se encontrar mas não se permitiam, não sei bem se por civilidade, ranço católico, ou puro medo mesmo. Ela me surgiu assim: falando coisas engraçadas e pitorescas do cotidiano, com os olhos rebolando sexualmente para a direita enquanto seu rosto se curvava para cima, depois para a esquerda - não demorei a perceber que fazia isso quando pretendia mostrar-se mais fêmea do que era, como se precisasse destes artifícios que explicitamente, a ela, eram completamente desnecessários. Depois encarnava uma intelectual sarcástica, e mostrando afinidade, gargalhava das imbecilidades dos mortais, falava-me de discos e livros que ouviu e leu, de autores e filmes que haviam a emocionado profundamente. E rindo acabava sempre por me falar de como se sentia só e dos planos mirabolantes que andava criando para re-inventar a vida toda em um futuro sempre distante ...

Eu procurava ficar em silêncio, e até aonde conseguia, escutá-la. Pequenos comentários no que, imaginava, dada a situação, digamos, completamente inesperada para mim naquela altura da vida, deveria ser um monólogo. Queria lhe falar de como seus passos, gestos, cheiro, pele e verbo andavamm a hipnotizar meu espírito, do quanto imagens de seu corpo índio exposto sob minha pele e minha língua andavam perambulando doce e risonhamente pelos meus pensamentos e sonhos imediatos. Mas continuava em silêncio, pelo o que eu imagina ser conveniente, muito provavelmente.

Quando falava, dizia que tal livro, disco ou filme conhecia sim, que eram muito bons. Outros, não me impactaram em nada (que por bom senso, entendia que não se dizia que pareceu idiota a um animal a quem se desejava imediatamente. No mais, tantos outros cotidianos haviam sido para mim em companhias de criaturas que nunca leram livro algum, do começo ao fim? Mas as comparações são sempre cretinamente burras). Outros eu não conhecia, e pedia que falasse mais, por favor, mesmo que imediatamente me importasse diretamente o que, como e porque, lhe haviam deixado cores, suavidades ou lições sobre as asperezas da existência. Aprendi que queria conhecer aquela mulher que casualmente surgia em minha frente, mas muitas vezes não conseguia observar racionalmente como ela pretendia se projetar para mim e as coisas das quais me falava porque o ímpeto guardado na minha garganta era voraz de tal forma que era necessário um esforço descomunal, mamífero, que exigia um certo tipo de controle dos sentidos, dos olhos, das mãos, das pernas, da coluna inteira, que me impedia de ver ou ouvir qualquer coisa, anestesiado, criança boba e sedenta que ficava com a sua presença.

Preciso ir meu bem, nos falamos amanhã, não é? Eu respondia simplesmente que sim, naquele mesmo lugar, como sempre, e tentava pensar em algo divertido para dizer, mas sem nenhuma piada que me surgisse espontânea, honesta, pronta. Ela seguia desfilando, arredando as cadeiras entre as mesas e os olhos de homens e mulheres, até tomar a rua. Eu pensava em sair dali, não havia mais razão plausível naquele lugar, naquele bar. Sairia, encontraria outra mulher, mas logo pensava também que todas haviam se tornado imediatamente um pouco desinteressantes diante da existência dela.

Trocava de mesa, de País, de linguagem, de civilização. Ouvia e falava sobre política, sobre o que estava lendo ou escrevendo, sobre futebol, sobre alguém que estava doente, fodido e mal-pago, fazia planos que nunca materializaria, ouviria as últimas noticias, sempre de bocas vulgares, sobre a vida sexual alheia e algumas indiretas sobre a forma como me relacionava com meia dúzia de amigas, com quem fodi muito menos do que imaginavam.

Acabava por ficar entediado, tomava mais umas cervejas e o cuidado de não desconstruir a imagem inventada, mesmo que míope, pois sabia ela fazia com que me respeitassem mais do que de fato eu merecia financeiramente, intelectualmente, politicamente e sexualmente também (eram, todas as companhias míopes, ótimas ex-mulheres minhas, embora elas ainda tivessem capacidade mais criativa para as tarefas fratricidas). Me perguntavam sobre quem era ela, sobre o que havia entre nós, eu respondia, como sempre, que éramos amigos.

Era verdade, ninguém acreditava, e eu tomava a rua, novamente acompanhado de alguma criatura que enlouqueceria algum espírito. Ia risonhamente, e amava toda a humanidade, por saber que era um macho que, em doses homeopáticas, ia aprendendo da arte de ser um pouco fêmea também. Saia do bar louco de vontade de tomar um soco no estômago com alguma experiência que valesse a pena, ia caminhando pela rua, feliz e satisfeito por minha condição masculina, em um mundo de machos, acompanhado por uma estranha, para um lugar que eu não conhecia, experimentar linguagens e pele que não conhecia. Mas era apenas uma questão de tempo.


Texto de Cícero Santiago

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