Texto produzido por:
Marcos Britto Corrêa
Acadêmico do curso de Licenciatura em Filosofia da UFSM
Coordenador do Práxis – Coletivo de Educação Popular
No dia 3 de Agosto estivemos mediando um grupo de debates - entre seis outros que também foram formados - sobre a Diversidade de Sujeitos na EJA, encontro promovido pela Coordenadoria Regional de Educação. Neste dia estiveram Marcelo, Lucas, Camile, Lorena, Samuel, Alith e eu (Marcos), junto com mais de duzentos professores de EJA e grupos da sociedade civil ligados a educação de jovens e adultos. Em uma tarde, muitos assuntos importantes foram levantados, muitas questões que dizem respeito a nós praxianos foram colocadas em destaque, e, portanto me fizeram pensar minha (nossa) prática no Práxis
No semestre passado li uma frase sobre educação de um autor chamado Alejandro Cerletti que trata sobre ensino de filosofia; o que li me fez repensar todos os anos de aluno que vivi, e que ainda vivo e a discordar, em parte, de sua posição. A frase é mais ou menos esta: “Se é como professor, boa parte do que se foi como aluno”. Bom; se interpretá-la literalmente não há como eu, péssimo aluno na escola e em minha graduação, acreditar que um dia serei um bom professor, desta forma o que ele fala me parece uma grande besteira. No entanto prefiro pensar que ele se refere a minha posição subjetiva e critica como aluno a não concordar com o tipo de educação que recebia e que ainda recebo, então assim, referente à minha atual e constante tentativa de não me tornar o tipo de professor que tanto critico, sou (ou tento ser) exatamente como educador o aluno que fui, pois o envolvimento que tenho com o conhecimento não é de apreensão, mas sim de vivência, de experiência. Onde a relação subjetiva que se tem com o objeto de ensino e o envolvimento do educando com ele são o que definem um bom ensino.
De certa forma o que digo acima não é “meu”, tem um pouco de Paulo Freire, Nietsche, Foucault... E sem dúvida, faz parte de você que esta aí lendo; faz parte da maioria dos professores que estiveram no encontro de quarta-feira e de muita gente envolvida com educação, mas o discurso que mais ouvi lá foi contrário a este, pois a maior parte dos problemas levantados diz respeito ao aluno e sua “má” vontade em aprender. Por que ainda dizemos que os alunos não querem aprender? Que os alunos não têm objetivo na vida? Que os mais jovens não respeitam os mais velhos, pois não ligam a mínima para a aula? Então me pergunto, por que transferimos boa parte de nossa responsabilidade aos alunos; a modernidade; a mídia...?
Minha experiência como educador é mínima, mas como aluno já passam dos dezesseis anos em sala de aula e cada vez mais vejo como a relação do senso comum com o conhecimento científico é difícil se não for bem mediada. O que nos cabe no Práxis? Qual o nosso maior problema? Sem dúvida acredito que o maior dos nossos problemas é a evasão, assim como pude perceber com todos que trabalham com um público do EJA. O que gostaria de fazer é expor um pouco o penso sobre esta questão, queria poder dividir com vocês o que me causa aflição e assim poder dividir alguns pensamentos.
Primeiramente devemos ter consciência de nosso público, pois mesmo que tenha mudado ao longo de quase doze anos de trabalho, ainda continua sendo preenchido por uma parcela da população que esta “fora” do grupo que tem “naturalmente” acendido as universidades. Conosco encontramos trabalhadores, alunos de ensino médio, estrangeiros, pessoas com necessidades especiais e de todas as partes de Santa Maria e região, isto é claro, óbvio; todos sabemos que são na maioria alunos de baixa renda e assim como nós, com inúmeras dificuldades que a cada dia impedem sua presença no Práxis. Entretanto assim como em qualquer escola de EJA, ou em qualquer cursinho de pré-vestibular popular, o público não é composto somente por pessoas marginalizadas socialmente, mas acima de tudo o que os levou até ali, estando já, com idade avançada, muitas vezes com família e filhos já maiores de idade, tendo que trabalhar basicamente para garantir seu sustento é o ensino público, é o ensino básico, defeituoso e incapaz de suprir as necessidades dos alunos que ali estão, onde acaba por tornar ainda mais gritante a marginalização que uma educação de má qualidade é capaz de criar em um país.
Nos últimos anos o Práxis começou seus trabalhos com cento e vinte alunos inscritos no inicio do ano, sendo que no fim, próximo ao vestibular restam em média quarenta alunos; no EJA o número de evadidos, segundo o que percebi no encontro de quarta-feira, não é tão diferente. Mas então, o que há com estes alunos que mesmo mais maduros e conscientes das necessidades de estudar desistem? Muitos dos professores com quem falei acreditam que o problema esta relacionado ao trabalho, e as inúmeras dificuldades que cada individuo passa e cujo, nunca saberemos ao certo como cada um se relaciona com isso. Dificuldades ordinárias todos têm, no entanto quando há algo que nos parece valer a pena não desistimos e nos dedicamos acima de qualquer problema, deste modo não penso que isto seja o limitante para um aluno de EJA ou do Práxis. Porém como disse anteriormente, esse aluno passou uma experiência de ensino e consecutivamente de vida, que não corresponderam a suas expectativas, por isso precisaram deixar a escola, trabalhar e garantir que suas necessidades básicas fossem sanadas, para só então voltarem a estudar, pois logicamente ninguém estaria lendo Kant ou fazendo estudos em Biologia de barriga vazia em uma casa de um cômodo onde as frestas na parede deixam todo o frio entrar.
Temos então um aluno no qual o ensino tradicional e a escola não serviram que não lhe “atraiu” e não foi capaz de respeitar suas individualidades e principalmente dificuldades. Pois bem; ao falar desta maneira me parece que estou selecionando um grupo de pessoas e dizendo que a educação não serve a eles ou que, eles não servem a ela, no entanto não se trata disso, pois sabemos que nem para jovens de classe média, com a idade desejada para cursar a série que estão cursando, não aceitam um ensino tradicional.
Aqui critico o ensino Tradicional e todo o objetivo ao qual ele serviu por muito tempo, no entanto ainda fazemos isso em sala de aula, ainda esperamos que nossos alunos “apreendam” o conteúdo para o vestibular e eles próprios, ao reclamar de uma aula tradicional, pedem “aula” quando o professor muda sua prática.
A inculcação de um arbitrário cultural define o “movimento” de uma sociedade, acaba por definir as ações mais cotidianas dos indivíduos que a compõe, o que por sua vez, mascara praticas que parecem ser naturais, mas que na verdade não passam de um condicionamento. Exemplo disso é a maneira com que uma sala de aula é organizada ou então, pensarmos que a felicidade reside em bens materiais em um frenético fetiche de produtos que permeia até mesmo nossas escolhas mais simples e particulares. Mudar este tipo de paradigma é uma tarefa difícil, pois mexe com a segurança de todas as pessoas; de certa forma, nossas tradições nos dão um tipo de apoio, onde nos sentimos seguros e incapazes de deixá-las. Com a educação não é diferente, séculos fazendo algo da mesma forma, parece determinar que ele sempre foi, e deverá ser assim.
O EJA carrega consigo esta dificuldade. Como ensinar para alguém que passou da idade de estar na escola, que trabalha o dia todo e que já não tem a mesma facilidade de assimilar novos conhecimentos como os mais jovens? Esse é o nosso desafio, por ser diferente nos obriga mudar, a repensar nossas ações e a relação que o conhecimento adquirido na universidade tem com a sociedade ao qual ele serve. Conhecer o sujeito com quem trabalhamos ver nele as mesmas características que vemos em nós e acima de tudo, ter empatia para com ele; ter a mesma empatia que temos por um personagem de filme, pois vivemos a ação dele como se fosse a nossa, e mesmo muitas vezes não concordando com ela, respeitamos, pois dividimos com ele nossas próprias tensões e expectativas. Esta dificuldade nos obriga a pensar novas maneiras de ser educador, pois somente isto faz com que melhoremos algo, caso contrário ser professor seria o mesmo que trabalhar em uma montadora de automóveis, pois ali cada peça tem seu lugar certo, e há uma maneira testada e atestada para montar um carro de forma rápida e perfeita.
Pensar novas práticas em sala de aula é obrigação de qualquer professor, mas o público de EJA com a qual trabalhamos nos obriga a ser ainda mais criativos. Penso que antes de ser um problema a resolvermos, ele é o motor que nos faz pensar diferente, criar e praticar o ensino de maneira diversa, respeitando outros paradigmas, que não são os mesmo de há alguns anos atrás. Nesta perspectiva se fala muito em interdisciplinaridade, no entanto pouco fazemos para que ela ocorra e pouco sentamos juntos para pensá-la. Teoricamente falando a interdisciplinaridade é muito simples, é só pensarmos, por exemplo, no ciclo do Nitrogênio e na sintetização da Amônia, elementos fundamentais para a agricultura, que possibilitam a produção em larga escala de alimentos. A partir da Química relacionamos com a Biologia, referente à absorção dos nutrientes pelas plantas; logo após com a História e a Geografia tratando a importância que a agricultura teve e tem para nossa sociedade; então entra a Filosofia ao problematizar a distribuição dos alimentos e a relação de poder que há neste processo, assim como podemos ligar a Matemática para explicar os complicados cálculos utilizados para que uma semeadora de grãos distribua corretamente determinada cultura em uma lavoura. Neste sentido que a unidade de pensamento e o trabalho conjunto são fundamentais para uma boa educação.
No Práxis temos esta dificuldade, como mudar? Como nos aproximarmos mais de nossos alunos afim de que estes se sintam acolhidos como nunca foram em nenhuma escola e mesmo na sociedade? Sem dúvida o pouco que escrevi aqui não soluciona problema algum, não mudará nada no ensino, mas mudou em mim, e assim como o diálogo que tive com aqueles professores na quarta-feira e que tenho todos os dias com nossos colegas no Práxis vem mudando constantemente, desta forma a troca diária de conceitos que temos uns com os outros define nossas ações em um ciclo que só pode acontecer se houver humildade e coletividade em nossos atos.